quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Literatura Canina

Como as mulheres grávidas, que vêem multiplicar-se outras grávidas pelas ruas, os atores também começam a ser perseguidos pelos temas dos seus trabalhos. Eu já tinha percebido isso, e encontro aqui mais uma oportunidade para confirmar essa perseguição. Outro dia, abrindo o livro mais próximo, encontro justamente uma passagem que tem tudo a ver com a minha personagem no Cão Sarnento (que é justamente o cão). O livro mais próximo era o Quincas Borba, e a passagem em que caiu meu olho é essa que registro abaixo, para provar meu ponto:
Mas já são muitas idéias, - são idéias demais; em todo caso são idéias de cachorro, poeira de idéias, - menos ainda que poeira, explicará o leitor. Mas a verdade é que esse olho que se abre de quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, tão expressivamente, parece traduzir alguma cousa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra coisa que não sei como diga, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre língua humana!
Afinal adormece. Então as imagens da vida brincam nele, em sonhos, vagas, recentes, farrapo daqui remendo dali. Quando acorda, esqueceu o mal; tem em si uma expressão, que não digo seja melancolia, para não agravar o leitor. Diz-se que uma paisagem é melancólica, mas não se diz igual cousa de um cão. A razão não pode ser outra senão que a melancolia da paisagem está em nós mesmos, enquanto que atribuí-la a um cão é deixá-la fora de nós. Seja o que for, é alguma cousa que não a alegria de há pouco; mas venha um assobio do cozinheiro ou um gesto do senhor, lá vai tudo embora, os olhos brilham, o prazer arregaça-lhe o focinho, e as pernas voam que parecem asas.
Machado de Assis - Quincas Borba

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