quinta-feira, 27 de maio de 2010

Teatro: Essa Profissão Maravilhosa

Em geral nós nos juntamos para reclamar; sempre que alguns de nós cruza o Atlântico (quando não simplesmente a linha do Equador), volta falando sobre as maravilhas das políticas culturais daqueles países onde não se pendura roupa à vista dos vizinhos e onde não se fala alto no metrô. Conheço artistas que passaram uma temporada na Europa e que, de volta ao Brasil, passaram a ser exilados em seu próprio país, para sempre saudosos do frio e da polidez. Realmente, por aqui é dura a vida de um artista, tão dura que corremos o risco de às vezes esquecermos por que fazemos teatro; fica como se não fosse uma opção (às vezes penso que não é mesmo; paixão não é opção, é paixão, mas isso é outra conversa), como se algum caminho sem volta tomado quando decidimos o que fazer da vida nos tivesse escravizado a uma existência de ensaios não remunerados e noites em claro a escrever projetos para os editais stalinistas que imperam no Brasil (onde temos que dizer qual é o nosso objetivo, qual é a nossa justificativa, quando tudo isso é na verdade pura subjetividade e intuição).
Em um jantarzinho de dramaturgos outro dia, no meio das sempre presentes reclamações, alguém lembrou aquilo que nós deveríamos nos lembrar todo dia, que nós devíamos escrever nas nossas testas e nos nossos espelhos: "mas esse é um preço pequeno para se fazer o que gosta". É isso aí. E sobre isso eu tenho uma historinha singela sobre uma descoberta boba, mas que é daquelas que justifica, para mim, o sangue-suor-e-lágrimas do fazer teatral. Falo do velhíssimo exercício da rolha.
Quem faz ou já fez teatro conhece o expediente, trata-se de falar com uma rolha presa entre os dentes para se obrigar a diccionar melhor o texto, e, depois de tirada a rolha, sentir que falar o texto é coisa facílima. Nos últimos dois ensaios do Núcleo 1408, retomando a nossa encenação do Calígula, de Albert Camus (que volta aos palcos nessa terça-feira, dia 1°, no espaço dos Parlapatões) nós lançamos mão desse exercício, porque eu achei que seria bom para que os atores chegassem em uma zona de conforto vocal que lhes permitisse adequar as suas vozes a um espaço menor do que aquele em que fizemos a nossa última temporada. O efeito foi muito além do esperado; nós não só batemos o texto com a rolha entre os dentes, mas os atores fizeram as cenas inteiras. O resultado, na passagem seguinte sem a rolha, foi um fôlego novo e inesperado nos gestos e nas falas. O esforço de fazer perceber a intenção das falas com a limitação da rolha fez com que, sem as rolhas, elas viessem mais delicadas e claras, o ritmo da peça ficou mais pulsante (segundo a Hévelin, porque com a rolha na boca o corpo instintivamente "fala" mais claro), e, provavelmente porque o ridículo a que a rolha submete toda a tragédia do Calígula (e, acreditem, fica bastante ridículo), pareceu surgir também um novo domínio da cena, um desejo de dar a sua real dimensão e uma intimidade nova (ou um desejo de afirmar a velha intimidade) - provando mais uma vez que a dessacralização é tão amiga do verdadeiro teatro quanto o seu extremo oposto, a ritualização. Tudo isso por causa de uma rolha. Sem dúvida o teatro é uma profissão maravilhosa.

Um comentário:

Juliano Dip disse...

Rui, compactuo da mesma opinião, este foi um grande achado.
A rolha deu um gás para as cenas. Foi impressionante o resultado. Fiquei muito surpreso. Antes do ensaio, sai de casa pensando, - mais um diretor pedindo a rolha, qual não foi a minha surpresa ao ver que dessa vez a ROLHA participou intensamente de nosso trabalho.

Mas, não posso deixar de registrar a comicidade que ela nos trouxe. É pra curar qualquer depressivo terminal. Não há como não rir diante de um ator representando com a rolha na boca, até mesmo o mais concentrado membro do grupo abriu uns sorrisos.

Sem duvida a rolha é um grande aliado a criação cênica, mas também é um excelente combustível para desopilar o fígado.

Estou rindo só de lembrar.
eheheeheheh